quarta-feira, dezembro 24, 2003

O DOCE e o AMARGO

Procuro a calma dentro de mim.
Respiro a calma dentro de mim.
Guardo o medo na gaveta.
Olho a beleza em alguém desconhecido....
Olho com ânsia todos os corpos só à procura de um rosto ausente que cresceu cá dentro.
Espero, neste canto do mundo, o despertar das violetas.
Percorro os ci­rculos com calma.
Procuro o tempo nos grãos de areia.
Fico quieto... quase imóvel.
Deixo uma vela quebrar a monotonia da escuridão.
Sinto vontade de recobrar uma lembrança...
Tenho saudades de saudades que não quero ter.
Revisto a felicidade antes de a deixar entrar.
Encarno a essência do guerreiro perfeito e educado.
Olho para as sombras de forma diferente.
Escolho, recolho, elejo, busco, expulso e modifico tudo aquilo que me rodeia a existencia.
Paro e tento perceber o desenho das pedras diante dos meus pés.
Observo um retracto daquilo que será provavelmente a mais abstracta grandeza do sonho - O SILÊNCIO.
Essa força muito maior que a simples ausência de som, atravesa todos os tempos para se estabelecer no seio de todas as dores.
Agora queria apenas conceber uma estrela, numa implosão letal de verdade e fogo, onde cometas loucos, em direcção ao mar, esbarram num mundo irreal de paredes brancas onde guardo todos os meus segredos numa tela branquissíma.
Cultivo neste branco o mais puro de todos os silêncios. Criminosas são as vozes que perturbam a imensa pureza do mesmo.
Alimento o perpétuo respirar.
Oiço um som, quase como uma melodia, que não sei muito bem explicar... um chorar perdido... qualquer que desliza até aos subúrbios da alma.
Queria abandonar-me a um caminho... qualquer coisa que me permitisse três mil e seiscentos segundos de ausência... ou um olhar.
Amanhã saberei eu andar? Saberei eu como se põe um pé à frente do outro?
Quero ver os caracóis dos anjos.
Quero perder-me na imensidão da luz azul.
Do meu lado direito a tampa do piano continua fechada... no entanto continuo a marcar as cordas soltas com zeros.
Lembro meses, semanas, dias, noites, horas...
Tempos em que unidos pelo silêncio, com uma lua cheia a servir de melodia de fundo, o trepidar das chamas... trémulas... incertas, com o frio pelas costas, mas o calor dentro de nós, felizes na alegria de estarmos juntos, encontramo-nos e descobrimo-nos.
De olhos abertos ou fechados, sentimos na alma tudo o que pairava na noite, tudo o que a tornava tão leve e doce, tão viva, tão mágica. Parecia não existir mais nada. Não existia. Aquele era o momento certo. Aquela era a verdade. Não demos as mãos... elas já estavam dadas. Éramos mútuos... completos... Ali a vida teve uma razão... Ali existimos.
E... sem aviso, inoportunamente, suja e cruel ela surgiu. Como um abalo preto courado pela dor daquela indefinida melodia distante... Azul escura quase negra. Caiu ali, naquele momento, em cheio, na pétala frágil, intacta e inocente, azul clara quase branca. Levou-a nos braços, sem autorização, como quem pode e manda, sugando a beleza de uma vida, minuscula e doce, vivida por uma flôr de seda que não pode resistir a tal INTRUSO
Constato, assim, que o DOCE nunca é tão doce se não tivernos a percepção daquilo que é AMARGO.

Powered by Blogger