quinta-feira, dezembro 08, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO IV de X

Acordou a escrever. Assustou-se. Agora até já escreve a dormir. Retrocedeu algumas folhas e leu:

"Há poucos lugares que têm o condão de mudar a nossa percepção geográfica. Este onde encontro está na fronteira entre mundos incompatíveis, sendo que o planisfério daqui assume uma lógica diferente. Durante décadas, este local, encerrou as fronteiras e impediu que tudo o que fosse influencia externa se imiscuísse nas suas questões internas.
Acordei ainda o sol não tinha vencido a escuridão. É estonteante o que a visão abarca. Desejava que os meus olhos fossem os de todos, que todas as pessoas pudessem ver através deles. Aqui onde eu estou, os relevos minuciosos dão vida às pedras.
A época de frio é uma coisa indefinida. Aqui onde eu estou, esperava-se a neve no começo de Setembro, no entanto chegou apenas há dias. Neva miudinho no meio da floresta, onde o vento gelado vem do interior da terra para empurrar a folhagem dos bosques, onde as pessoas se vestem de lã, onde os termómetros registam temperaturas negativas.
Lembro-me, nesta madrugada, de me ter sentado perto da cama e de, triste e seriamente, tentar decidir se realmente eras aquilo que me parecias ser.
Ali perto, estás de barriga para baixo, com os braços ancorados debaixo da almofada.
Falo-te daqui, onde nenhum corpo tem sentido ou se define no tempo.
Falo-te apenas para te dizer a quão encantadora é a vulgaridade dos teus pensamentos e das tuas acções. Fizeste disso a chave de uma filosofia muito brilhante, expressa em peças e paradoxos. Mas a frivolidade e as loucuras da tua vida cansavam-me, ás vezes, demasiado. Só te deixavas encontrar no lodo, e se bem que o único tópico à volta do qual a conversa invariavelmente se centrava fosse terrivelmente fascinante, aborrecia-me mortalmente a maneira como centravas toda a tua paixão em teatros ligeiros ou em excessos absurdos numa qualquer outra característica tua que menos me atraia, ou seja, como uma parte do preço, alto, que tínhamos, de uma forma geral, de pagar para te conhecer.
Não havia outra alternativa. Pela profunda se bem que mal empregue afeição que te tinha, pela grande piedade que sentia pelos teus desejos de carácter e temperamento, pela minha proverbial bondade e preguiça, pela aversão artística a cenas grosseiras e palavras ordinárias, pela capacidade que me caracterizava de guardar ressentimentos de qualquer espécie, pelo meu descontentamento em ver a vida tornar-se amarga e insuportável, pelo que a mim, que tinha os olhos voltados para outras coisas, pareciam ser bagatelas demasiado insignificantes, para mais do que um momento de atenção ou interesse, por todas estas razões cedi. Como resultado natural, os teus pedidos, os teus esforços de dominação, as tuas exigências, tornaram-se cada vez menos razoáveis. O motivo mais insignificante, o apetite mais baixo, a paixão mais banal, tornaram-se para ti leis pelas quais as vidas dos outros se deveriam guiar sempre, e às quais, se necessário, deveriam ser sacrificadas sem escrúpulo. Sabendo que fazendo cenas, acabavas sempre por obter o que querias, era natural que assim procedeces, quase inconscientemente, tenho a certeza, recorrendo a excessos de violência banal.
Só tinhas meros apetites. Ao fim e ao cabo nem sabias o que querias nem tão pouco o fim que tinhas em vista, ou seja, quem não sabe o que procura não percebe quando encontra.
A cegueira pode ir tão longe que se torna grotesca, e na natureza desprovida de imaginação, se nada se fizer para despertá-la, achar-se-á petrificada na insensibilidade mais absoluta, enquanto o corpo come, bebe e goza a alma que lá mora morrerá irremediavelmente, no entanto alguém com o seu lado confuciano mais apurado, poderia facilmente contra argumentar dizendo que tudo possui a sua beleza, mas nem todos estão aptos a vê-la.
Se encontrares uma falsa desculpa, em breve encontrarás centenas de outras, e continuarás a ser o que eras.
Ainda hoje não consigo definir-te..."

Entenderam? Eu não. Talvez não seja para entendermos. As bocas voltaram a sair das paredes com um único objectivo: gritarem... PALHAÇO DE MERDA.
Hoje não amanheceu para este louco.

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