NA PRAIA...
...eu e um amigo estamos sentados numa esplanada. Pedimos um Martini Bianco cada um. Estamos em Abril, debaixo de um sol obsceno. Não há razão para omitir o perfume escandaloso. O meu amigo fez um charro. Acende-o. E fuma-o descontraidamente. Eu, a seu lado escrevo vagarosamente saboreando o meu Martini. O mar, para mim, sempre serviu de refugio na serenidade que me transmite, bem como inspiração para escritas sem qualquer peso ou significado (para vocês). Eu que procuro significados no quotidiano, o meu amigo que se afunda num quotidiano sem significado. Enquanto vou escrevendo, paralelamente, vou traçando uns esboços no rebordo da folha do meu bloco de notas. Aparentemente desenhos sem significado algum. O desenho não é, como pode julgar-se,um confronto de linhas ou traços, um gráfico representando qualquer coisa existente , ou para lá da realidade. O desenho é o nosso entendimento a fixar um instante real ou irreal. No fundo tento desenhar, escalonar, representar graficamente um mapa com um itenerário que gostaria de seguir. Um mapa de um território por mim delineado. Uma cartografia que teimo em seguir, com uma teia intra-remessiva de referências e códigos onde cada parte assinalada se significa nessa constante cadeia de relações negociadas entre distâncias e proximidades.
O meu amigo continua a fumar e eu a viajar entre a escrita e o desenho.
Numa mesa ao nosso lado uma conversa atrai a atenção dos meus sentidos. Nessa mesa estão 3 pessoas. Uma de idade simpática, e outras duas mais novas, uma delas grávida. Alguém na referida mesa profere a seguinte frase: « Essa, coitada, faz-me pena. Casou-se com um homem que não ama porque não tinha coragem para ser feliz. E tinha génio que chegasse para pelo menos tentar».Esta frase caída como um pedaço de vulcão dentro da leveza de um martini, calou a má lingua que dançava animadamente em torno da pessoa em questão, para logo passarem à vitíma seguinte. Enroscada no seu liquído amniótico, a criança grita com uma intensidade ensurdecedora palavras como: « I am, I live, I matter».
A escrita. O mapa.
Um mapa selecciona, exclui e engloba, converte, orienta, guia ou distrai, divide, fragmenta, parcela ou reune, (in)dissocia, torna uno, recompõe-se na visão totalizadora do que se representa. É um imenso puzzle não arbitrário de ligações que se reposicionam no espaço que representa, sendo que a sua localização potencia o que nele (não)descreve, indexa ou deixa em aberto.
O meu amigo continua, numa serenidade desconcertante, absorvido nos seus rituais de fumo a olhar o mar. Não olha para mim. Não me faz perguntas. Não me perturba. E eu agradeço. A minha atenção volta-se de novo para a mesa ao lado. Continua a falar-se da vida alheia. Vicissitudes amorosas e conjugais estão na ordem do dia sem dúvida alguma. Munidas de algumas revistas côr-de-rosa e femininas para que qualquer dúvida que surgisse, pudesse ser logo aniquilada. Parecia que ainda estavam na mesma conversa de à pouco. Impressionante.
Uma das dificuldades mais evidentes desse animal infaustamente domesticado que é o amor, reside na aceleração do tempo: muitas vezes, só reparamos no amor que nos aterrou à porta quando ele já voou para outras paragens. Então, na melhor das hipotéses, maquilhamo-nos, penteamo-nos, vestimos uma roupa bonita, desdenhando o inacessível cacho: «ora estava verde, ninguém o poderia tragar» - tentamos convencer-nos.
Por outro lado o nosso tempo veloz é também um tempo imenso: vivemos agora, pela primira vez na história, os anos suficientes para contabilizar perdas e danos, e tropeçarmos fisicamente no corpo ferido do tempo perdido de Proust.
Talves seja altura de regressar ao grau zero da escrita e rasurar o mapa. Dou por terminado o meu post. O meu amigo termina o seu charro. Uma pesada nuvem envolve duas consciências ligeiras: uma tranquilizada; a outra anestesiada.
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