terça-feira, maio 18, 2004

O SONHO DOS HOMENS DA FLORESTA

Não há limite para a toxicidade que conseguem suportar antes de explodirem.
Vão para ilhas para viverem plenamente e sugarem o tutano da vida. Lívidos, mais por causa da melancolia do que pela dor, os seus rostos parecem marcados pelos estigmas de uma doença que não perdoa. Resgatam imagens de corpos que nunca viram. Descobrem timbres recônditos e exploram-nos até à exaustão. Afogam-se nas florestas, dessas ilhas, em actos de desespero saudável.
Olhos aparecem por detrás das árvores. São castanhos da cor dos troncos, das árvores gigantes, confundindo-se com estas, e dão luz a rostos que não gostam de se expor demasiado. Rostos que preferem vigiar os sonhos e inquietações, daqueles que jazem na floresta, à distância de uma folha de papel.
De entre os olhos castanhos sobressaem uns muito claros, daquela cor marítima, saturada de sal, própria dos ilhéus. São os olhos que lhe elogiam mais. Os olhos azuis da parte do mar, - foi o mar que lhe deu vida (nunca disse como veio aqui parar) - mas os traços rasgados são seus. Serve-se dos olhos para perceber a beleza dos outros - beleza tem a ver com personalidade e atitude, havendo pessoas que não tem nada de bonito, mas a sua personalidade e atitude reflecte-se numa simples fotografia. É um dom raro, esse de agarrar instantaneamente a alma dos outros, num só relance pelo cheiro e pelo tacto íntimo do olhar.
De repente, os homens da floresta, tornam-se em algo que não ambicionam. Têm sonhos muito vivos, muito activos, sonhos que parecem realidade. Sonham extraordinariamente leve e completo... sonham a vida. Explicam a ponte entre o visível e o invisível, para quando morrerem não descobrirem que não viveram.
E depois... a floresta com céus próprios, absorve a importância de tudo isto em duas ou três passadas ensinando-lhes a gritar ao mundo. Pede-lhes - a floresta - que recordem alguém a quem gritar. Alguém quase amigo, sem nome. Alguém com a ingenuidade certa para lhes trazer de volta a sua história, outra vez, reencontrando a dádiva de novo depois da tristeza.
E assim, gritam em uníssono:

«Poderias dar-te a outro, / mas nenhum outro poderia amar-te de uma forma mais pura ou mais completa do que eu te amo. / Para nenhum outro poderia a tua felicidade ser mais sagrada do que o é para mim, / porque, para mim, todo o tempo que não é gasto contigo é desperdiçado. / E como para sentir todo o valor da alegria é necessário ter alguém com quem dividir, / tudo aquilo que eu amo perde metade do seu valor se tu não estás perto para partilha-lo. / Por isso, eu agora, poderia afirmar que se nunca mais nos encontrássemos nas nossas vidas, / eu sentiria que, de alguma forma, toda a aventura da existência estava justificada por te ter conhecido. / Por isto... podes duvidar que as estrelas são fogo, / podes duvidar que o sol se move, / e até podes duvidar da verdade como se mentisse... / mas jamais duvides que eu te amo.»

E assim, os Homens da floresta, gritaram, gritaram e gritaram... para que o silêncio das suas vozes não lhes voltasse a doer de novo.
Frios, metódicos e cerebrais, os Homens da floresta constituem um paradigma que escapa à racionalidade - seria irracional estarem apaixonados por alguém que os despreza, que os tortura e que os fazem sofrer continuadamente. Mas por vezes as emoções roçam a loucura.
O mundo da floresta restringe-se a esta realidade: Calca-se uma cara, um nome, um cheiro ou um espaço... dissolvem-se as leis primárias... e esquecem-se os significados.
Por entre as árvores a luz caminha quase insuspeita, desenvolvendo uma cor artificial... quase mística.
Em duas horas tentam encontrar a essência divina. Esse liquido denso. Esse mel intemporal. Essa transcendência por detrás das pessoas... das vidas dissolvidas na floresta. Na chuva. Na cama.
Por um período de tempo tentam mostrar como se cria do nada, apenas bebendo esse mel sagrado - seiva do corpo da humanidade.
Saem da floresta e libertam os fios da imaginação. Invadem uma janela perdida... um espaço vazio onde não mora ninguém.
O pó incrustado... o pó insolúvel da memoria... nas paredes... no chão... na memória... sobre todo o passado, todos os momentos sem tempo daquela floresta vazia, impregnado daquele cheiro intenso emanado pelo som das suas vozes.
A presença carregada de um vazio inominável.
Perdem-se assim nesta ausência. Ausência de tempo. Ausência de luz. Ausência de realidade. Perdem-se, simplesmente, na ausência de um sonho.

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