terça-feira, maio 25, 2004

O JANTAR

Ao pôr-do-sol, quando o dia começa a ser invadido pela noite e o sol parece incendiar o céu, decidimos ir jantar. Escolhemos um lugar com vista para o mar. A fugaz brisa marítima dilui levemente a mornidão deste inicio de noite. Deste lugar usufruímos uma panorâmica soberba sobre uma enseada. A cor do oceano funde-se na horizontal com o azul, quase negro, do céu iluminado pelo inicio de uma lua cheia e enfeitado com uma miríade de estrelas que tornam o ambiente suave, distendido e mágico. Espalhadas pela encosta contígua à praia, pontos de luz indicam as casas que aqui vivem um eterno Verão.
Aqui começa um tipo de história inexplicável, difícil de verbalizar, onde o não entendimento, o pânico, a dor, a duvida, o porquê eu, os olhos postos na santíssima Trindade, o não por não e por fim e a desmaterialização de mim próprio começa a apoderar-se de tal maneira que me tornei alheio.
Propõem-nos um cocktail. A filosofia deste consiste em tentar descrever o perfume do seu sabor. Tal como o cheiro, uma vez escutadas, essas descrições ficam connosco para o resto das nossas vidas. Como os contos de fadas da nossa infância. Cada perfume é uma viagem num jardim florido, num bosque, num pais exótico, entre pomares, num ambiente evocador e propício à degustação de uma essência que se desenvolve de uma maneira muito especial. Nunca sabemos do que se trata sem antes a provarmos e, ou, a cheirarmos. Não temos diante de nós nenhuma marca, nem sequer um nome. Apenas um mar de cores, sabores e cheiros.
Os cocktails têm este poder. Toda a matéria se desvanece numa consciência... numa consciência repentina e pirosa no mundo do dia-a-dia, de que somos todos um, só amor existe, não há matéria e somos iludidos por este nosso conceito de espaço e de tempo. A estrutura é desinteressante e é uma total ilusão de segurança ou mesmo de estrutura.
Não há explicação para as nossas vidas. Não há a quem pedir satisfações, não se questiona os acontecimentos, escolhas ou factos da nossa única e intransmissível vida.
De volta ao restaurante, este é very casual chic, encontrando-se cheio de gente bonita, charmosa, a condizer com o lugar. Jantar aqui é ir além da gastronomia. O ambiente relaxante transforma uma simples refeição numa experiência sensorial transportando-nos para um sonho que inclui uma morena muito guapissíma que põe os Homens a uivar ao luar como coiotes.
Pedimos um borrego assado no forno. Divinal. Porém na maioria das vezes - leia-se noutros restaurantes - condenado a uma insipidez que não lhe merece o supremo sacrifício.
O horror acontece. O horror é um choque, tal como a insipidez de um borrego assado no forno. Um instante de absoluta cegueira. O horror é totalmente desprovido de beleza. Não se vê senão a luz violenta do acontecimento desconhecido que se espera. A tristeza pelo contrário implica que se saiba. E eu sabia o que me esperava.
Durante um jantar atingimos o estado de nirvana. A iluminação estabeleceu um jogo intimista de luz e sombras com uma decoração meridional própria dos terracinhos brancos de uma qualquer cidade grega sobre o mar. No seu interior nada se ouve, apesar de se adivinharem os passos, os limites perdem-se no branco, num espaço continuo apenas assaltado pela presença de alguém, holograma mais pressentido do que visto.
De repente somos presenteados, para nosso gáudio, com uma música e uma dança típica desses países mais a oriente. A voz dengosa do cantor amolece-nos a vontade e dá corpo a um espectáculo extraordinário. Corpos quase nus em movimento, no perfeito gozo das suas faculdades, como uma espécie de magnificação da vida. Foi uma coisa que nunca vi nenhum bailarino fazer com tanta alegria, com tanta leveza e riqueza de expressão.
Preferi assim deixar-me contagiar pelo que via sem me entregar as práticas habituais. Tive oportunidade de contactar com um ambiente completamente surpreendente pela luz, pela cor e pela presença humana. Mais do que os pormenores, tentei fixar a dinâmica da construção plástica dos acontecimentos, o choque de forças e a energia libertada.
Existe hoje em dia o agarrar em coisas que são pouco mais do que lixo e transformá-las em algo que possui uma espécie de exaltação erótica, com a sofreguidão de justificar um tempo humano que não anda em círculos, mas avança em linha recta. Por isso o Homem não pode ser feliz - A felicidade é o desejo de repetição.
Quando a dança acaba, largamos uma lágrima comprada numa loja de solidariedade, e interiorizamos um silêncio que nos acompanha até ao encontro das nossas essências pessoais, dos nossos odores favoritos, que mais e melhor despertam as nossas papilas olfactivas e gustativas, que mais penetram no nosso cérebro, que mais desencadeiam os nossos sentidos adormecidos pela monotonia das culturas actuais.
Tais essências foram aqui, neste jantar, elevadas a um grau de excelência que ainda hoje tento imitar e reproduzir.
De vez em quando levanto os olhos para me situar geograficamente. E de cada vez que os levanto é como uma primeira vez. Sinto o mesmo assombro pela sua graça, a mesma alegria por aquele jantar ter existido, e por eu o estar a ver, como se a pureza de uma vida iluminada se diluísse na frescura cintilante da água.
Hoje... de volta a esse restaurante, o resto do mundo vira-se para o lado, ou na melhor das hipóteses fuma um cigarro. As flores estão quebradas, tristes, esmorecidas, derrotadas. O tom vermelho, esbatido, em contraste com a forte luz branca da janela encaixam um sentimento doloroso no meu olhar sobre esta imagem. O glamour desapareceu. As paredes falam aos gritos. E a descrição de tal momento é um desafio à minha capacidade de escrita.

(As tartarugas continuam, na enseada, nos seus voos subaquáticos aliviadas na paz em que vivem e não mergulhadas à procura dela).

terça-feira, maio 18, 2004

O SONHO DOS HOMENS DA FLORESTA

Não há limite para a toxicidade que conseguem suportar antes de explodirem.
Vão para ilhas para viverem plenamente e sugarem o tutano da vida. Lívidos, mais por causa da melancolia do que pela dor, os seus rostos parecem marcados pelos estigmas de uma doença que não perdoa. Resgatam imagens de corpos que nunca viram. Descobrem timbres recônditos e exploram-nos até à exaustão. Afogam-se nas florestas, dessas ilhas, em actos de desespero saudável.
Olhos aparecem por detrás das árvores. São castanhos da cor dos troncos, das árvores gigantes, confundindo-se com estas, e dão luz a rostos que não gostam de se expor demasiado. Rostos que preferem vigiar os sonhos e inquietações, daqueles que jazem na floresta, à distância de uma folha de papel.
De entre os olhos castanhos sobressaem uns muito claros, daquela cor marítima, saturada de sal, própria dos ilhéus. São os olhos que lhe elogiam mais. Os olhos azuis da parte do mar, - foi o mar que lhe deu vida (nunca disse como veio aqui parar) - mas os traços rasgados são seus. Serve-se dos olhos para perceber a beleza dos outros - beleza tem a ver com personalidade e atitude, havendo pessoas que não tem nada de bonito, mas a sua personalidade e atitude reflecte-se numa simples fotografia. É um dom raro, esse de agarrar instantaneamente a alma dos outros, num só relance pelo cheiro e pelo tacto íntimo do olhar.
De repente, os homens da floresta, tornam-se em algo que não ambicionam. Têm sonhos muito vivos, muito activos, sonhos que parecem realidade. Sonham extraordinariamente leve e completo... sonham a vida. Explicam a ponte entre o visível e o invisível, para quando morrerem não descobrirem que não viveram.
E depois... a floresta com céus próprios, absorve a importância de tudo isto em duas ou três passadas ensinando-lhes a gritar ao mundo. Pede-lhes - a floresta - que recordem alguém a quem gritar. Alguém quase amigo, sem nome. Alguém com a ingenuidade certa para lhes trazer de volta a sua história, outra vez, reencontrando a dádiva de novo depois da tristeza.
E assim, gritam em uníssono:

«Poderias dar-te a outro, / mas nenhum outro poderia amar-te de uma forma mais pura ou mais completa do que eu te amo. / Para nenhum outro poderia a tua felicidade ser mais sagrada do que o é para mim, / porque, para mim, todo o tempo que não é gasto contigo é desperdiçado. / E como para sentir todo o valor da alegria é necessário ter alguém com quem dividir, / tudo aquilo que eu amo perde metade do seu valor se tu não estás perto para partilha-lo. / Por isso, eu agora, poderia afirmar que se nunca mais nos encontrássemos nas nossas vidas, / eu sentiria que, de alguma forma, toda a aventura da existência estava justificada por te ter conhecido. / Por isto... podes duvidar que as estrelas são fogo, / podes duvidar que o sol se move, / e até podes duvidar da verdade como se mentisse... / mas jamais duvides que eu te amo.»

E assim, os Homens da floresta, gritaram, gritaram e gritaram... para que o silêncio das suas vozes não lhes voltasse a doer de novo.
Frios, metódicos e cerebrais, os Homens da floresta constituem um paradigma que escapa à racionalidade - seria irracional estarem apaixonados por alguém que os despreza, que os tortura e que os fazem sofrer continuadamente. Mas por vezes as emoções roçam a loucura.
O mundo da floresta restringe-se a esta realidade: Calca-se uma cara, um nome, um cheiro ou um espaço... dissolvem-se as leis primárias... e esquecem-se os significados.
Por entre as árvores a luz caminha quase insuspeita, desenvolvendo uma cor artificial... quase mística.
Em duas horas tentam encontrar a essência divina. Esse liquido denso. Esse mel intemporal. Essa transcendência por detrás das pessoas... das vidas dissolvidas na floresta. Na chuva. Na cama.
Por um período de tempo tentam mostrar como se cria do nada, apenas bebendo esse mel sagrado - seiva do corpo da humanidade.
Saem da floresta e libertam os fios da imaginação. Invadem uma janela perdida... um espaço vazio onde não mora ninguém.
O pó incrustado... o pó insolúvel da memoria... nas paredes... no chão... na memória... sobre todo o passado, todos os momentos sem tempo daquela floresta vazia, impregnado daquele cheiro intenso emanado pelo som das suas vozes.
A presença carregada de um vazio inominável.
Perdem-se assim nesta ausência. Ausência de tempo. Ausência de luz. Ausência de realidade. Perdem-se, simplesmente, na ausência de um sonho.

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