quarta-feira, dezembro 14, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO X de X

Há irremediavelmente, na viagem deste louco, e na distância em relação ás coisas, uma soma incontornável de recordações. Mais recordações do que memórias.
A memória tem uma certa lógica; as recordações são fragmentos, enumerações, retratos, coisas sem nexo. As Suas memorias vêm desde a infância, ordenadas e passando de um calendário a outro, de uma casa a outra, de uma paisagem a outra. As suas recordações são instantes de sorte, adversidade, paixão. Muitas delas têm a ver com a viagem e ele esforça-se por não lhes dar ordem nem sentido: coisas sem importância.
Este louco também tinha as suas ilusões. Pensava que a vida seria uma brilhante comédia e que haveria graciosas personagens que participavam dela. Descobriu ser uma revoltante e repugnante tragédia e que a sinistra ocasião da grande catástrofe, sinistra na sua convergência de propósitos e intensidade da exígua força de vontade, lhe tirou aquela mascara de alegria e de prazer.
A lembrança do que teve, depois do sucedido, teimou em acorda-lo durante a noite para lhe contar a mesma história de sempre, uma e outra vez, até que a sua repetição cansativa fazia com que o sono o abandonasse até de madrugada.
Quanto a mim, sou adepto da máxima de que as viagens precisam de um pouco de desordem. Uma desordem amorosa que transforme a viagem em descoberta pura e desperta para o acaso, o inesperado, as sombras de uma paisagem, a chuva que cai lá fora ouvida do aconchego do quarto, uma caminhada de kilometros à beira-mar ou uma viagem de carro sem destino. Há nisto um prazer irregular e contagiante quando a companhia de viagem é apropriada. A disciplina fica em casa. Os bons hábitos reservam-se para o nosso dia-a-dia. A vida é outra vida necessariamente.

Gosto de aeroportos.
Gosto de procurar um voo, um destino ou uma cidade no painel electrónico.
Gosto de ficar sentado à espera de aviões.
Gosto de tabacarias onde se vendem jornais em línguas desconhecidas.
Gosto de cidades sem geografia.
Gosto de respirar e de pisar outros lugares que não os habituais.

terça-feira, dezembro 13, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO IX de X

A membrana de ar onde se movimentam os dias tem uma cor azulada. Passa horas à volta com a ordem das frases e, no dia seguinte, muda tudo. Pouco mais tem a dizer. Caminha largando os últimos resíduos da memória. Parece-lhe inútil falar das razões da sua viagem. Perscruta a razão profunda desta. Destrói cartas, papeis, manuscritos e outros sinais.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO VIII de X

TELEGRAMA: para viagem directa STOP renuncio atravessar a cidade cheia de aventuras STOP

domingo, dezembro 11, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO VII de X

Mais do que o tempo ou memórias, amor será sempre amor. E, por mais que possa esquecer-me de como se sente, por mais que não consiga expressá-lo... saberei sempre como amar-te. Escreveu-lhe ele um dia.
Eu amo-te muito. Tanto tanto tanto. Amo-te mais do que tudo. Amo-te de tal forma que a sua descrição foge largamente aos parâmetros do real. Neste caso tal amor não é passível de descrição. E mais não digo. não porque não me apeteça, mas porque não encontro palavras para tal. Não consigo viver mais assim com tanto amor. Estou sufocada. Basta... Escreveu-lhe ela de volta.

Descobriram hoje, domingo, a gata morta na cama. Do outro lado da porta ouvia-se alguém dizer: " Sabe, no fundo é gente simples que vive por aqui."

O domingo é muitas vezes um dia triste, as crianças temem por não terem feito os trabalhos de casa, e os adultos entardecem no sofá, esperando a segunda-feira.

sábado, dezembro 10, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO VI de X

Manteve-se imóvel, nu, em cima da areia. Iam visita-lo e levavam-lhe ramos de lírios para enganar o cheiro nauseabundo. Falava pouco. Ficava sentado aos pés da cama... enrolava cigarros e fumava-os com os convidados. Tudo em silencio. Não pagava gás porque tinha uma ligação feita ao andar de cima. Não pagava luz porque há muito que habitava a treva absoluta. No hospital davam-lhe comprimidos de todas as cores. A enfermeira trazia-lhe o jornal todas as manhãs. Lia somente as caixas altas e anúncios sem interesse. Da parte da tarde metiam-lhe um colete-de-forças e atavam-no a uma árvore no meio do pátio. Diziam-lhe que era a hora do recreio e ele ria desalmadamente. "Podia ter-te reduzido a bocados com censuras amargas. Podia ter-te delicerado com maldições. Podia ter-te segurado num espelho e ter-te mostrado tal imagem de ti própria, que não terias reconhecido como tua, até que a visses imitando os teus gestos de horror." - Anota mentalmente para logo passar para o papel assim que as visitas se fossem embora.

sexta-feira, dezembro 09, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO V de X

Risca as palavras capazes de lhe revelar o segredo. Três camisas, um lápis, um teclado e muitos livros para ler em voz alta nas horas fantásticas da noite. A cidade ilumina-se em geometrias incompreensíveis, espreguiça-se pelas avenidas periféricas... cette putain de ville. A viagem é uma predisposição. Temos de deseja-la e prepara-la cuidadosamente. Viajar sem sair do quarto. As malas arrumadas junto à porta. Ao fim de uma hora reabre-as e repõe as coisas nos seus lugares. Basta fingir que está a chegar. O horror de pensar que uma vida tão jovem, e que de entre todos os seus defeitos tinha ainda promessas de beleza, acabaria de forma tão revoltante. Fabricou amor a partir do zero. E pensou ter encontrado alguém que entendesse o amor como partilha absoluta. No entanto a infeliz fraqueza que a caracterizava, o desejo ingrato e infantil, o sorriso tão meigo quanto sarcástico está entranhado na estagnação do cheiro da areia ensanguentada e das algas esmagadas. O louco dorme sobre a sua almofada.

quinta-feira, dezembro 08, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO IV de X

Acordou a escrever. Assustou-se. Agora até já escreve a dormir. Retrocedeu algumas folhas e leu:

"Há poucos lugares que têm o condão de mudar a nossa percepção geográfica. Este onde encontro está na fronteira entre mundos incompatíveis, sendo que o planisfério daqui assume uma lógica diferente. Durante décadas, este local, encerrou as fronteiras e impediu que tudo o que fosse influencia externa se imiscuísse nas suas questões internas.
Acordei ainda o sol não tinha vencido a escuridão. É estonteante o que a visão abarca. Desejava que os meus olhos fossem os de todos, que todas as pessoas pudessem ver através deles. Aqui onde eu estou, os relevos minuciosos dão vida às pedras.
A época de frio é uma coisa indefinida. Aqui onde eu estou, esperava-se a neve no começo de Setembro, no entanto chegou apenas há dias. Neva miudinho no meio da floresta, onde o vento gelado vem do interior da terra para empurrar a folhagem dos bosques, onde as pessoas se vestem de lã, onde os termómetros registam temperaturas negativas.
Lembro-me, nesta madrugada, de me ter sentado perto da cama e de, triste e seriamente, tentar decidir se realmente eras aquilo que me parecias ser.
Ali perto, estás de barriga para baixo, com os braços ancorados debaixo da almofada.
Falo-te daqui, onde nenhum corpo tem sentido ou se define no tempo.
Falo-te apenas para te dizer a quão encantadora é a vulgaridade dos teus pensamentos e das tuas acções. Fizeste disso a chave de uma filosofia muito brilhante, expressa em peças e paradoxos. Mas a frivolidade e as loucuras da tua vida cansavam-me, ás vezes, demasiado. Só te deixavas encontrar no lodo, e se bem que o único tópico à volta do qual a conversa invariavelmente se centrava fosse terrivelmente fascinante, aborrecia-me mortalmente a maneira como centravas toda a tua paixão em teatros ligeiros ou em excessos absurdos numa qualquer outra característica tua que menos me atraia, ou seja, como uma parte do preço, alto, que tínhamos, de uma forma geral, de pagar para te conhecer.
Não havia outra alternativa. Pela profunda se bem que mal empregue afeição que te tinha, pela grande piedade que sentia pelos teus desejos de carácter e temperamento, pela minha proverbial bondade e preguiça, pela aversão artística a cenas grosseiras e palavras ordinárias, pela capacidade que me caracterizava de guardar ressentimentos de qualquer espécie, pelo meu descontentamento em ver a vida tornar-se amarga e insuportável, pelo que a mim, que tinha os olhos voltados para outras coisas, pareciam ser bagatelas demasiado insignificantes, para mais do que um momento de atenção ou interesse, por todas estas razões cedi. Como resultado natural, os teus pedidos, os teus esforços de dominação, as tuas exigências, tornaram-se cada vez menos razoáveis. O motivo mais insignificante, o apetite mais baixo, a paixão mais banal, tornaram-se para ti leis pelas quais as vidas dos outros se deveriam guiar sempre, e às quais, se necessário, deveriam ser sacrificadas sem escrúpulo. Sabendo que fazendo cenas, acabavas sempre por obter o que querias, era natural que assim procedeces, quase inconscientemente, tenho a certeza, recorrendo a excessos de violência banal.
Só tinhas meros apetites. Ao fim e ao cabo nem sabias o que querias nem tão pouco o fim que tinhas em vista, ou seja, quem não sabe o que procura não percebe quando encontra.
A cegueira pode ir tão longe que se torna grotesca, e na natureza desprovida de imaginação, se nada se fizer para despertá-la, achar-se-á petrificada na insensibilidade mais absoluta, enquanto o corpo come, bebe e goza a alma que lá mora morrerá irremediavelmente, no entanto alguém com o seu lado confuciano mais apurado, poderia facilmente contra argumentar dizendo que tudo possui a sua beleza, mas nem todos estão aptos a vê-la.
Se encontrares uma falsa desculpa, em breve encontrarás centenas de outras, e continuarás a ser o que eras.
Ainda hoje não consigo definir-te..."

Entenderam? Eu não. Talvez não seja para entendermos. As bocas voltaram a sair das paredes com um único objectivo: gritarem... PALHAÇO DE MERDA.
Hoje não amanheceu para este louco.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO III de X

Uma estrela cadente passa sem que tenha tempo de formular um desejo. Azar do caralho... acaba por escrever. Limpa a merda que o cobre e as algas.
Este louco tem medo de se aperceber da nódoa de tinta permanente presa aos dedos. Por isso usa lápis ou ocasionalmente o teclado de computador que desenhou numa das paredes. Caminha na miragem de um naufrágio, algures pelas estradas de um continente que o odeia e a sua fortuna é estar vivo e poder dormir à beira da estrada. A gata mija-lhe em cima dos manuscritos. Ah, a gata, essa puta gulosa que assobia ao medo durante a noite, snifando a calma tal como uma puta snifa cocaína. Senta-se à beira da cama com os pés dentro de àgua. Os textos que escreve são o possível despertar do corpo, as suas pulsações bruscas, fragmentadas, outros corpos vibram, nomes que acendem desejos. Tudo anota pacientemente. Tem um travo a lodo na garganta. A cidade arde-lhe sobre os pés molhados. As veias incham-se-lhe. Come uma tangerina sem gomos nem caroços para entreter o estômago. Esvazia-se das palavras em labirintos.

terça-feira, dezembro 06, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO II de X

Foi simples viver assim. Entre duas mantas, num humilde abrigo de caniços e juncos. Sem qualquer espécie de mobiliário, sem televisões, sem famílias, sem...
Invadem-lhe o corpo, coagulam nele, lambem-no por dentro. Propaga-se um canto quase inaudível e um estremecimento. Amachuca a folha de papel nos dentes. Enfiando-a nas algibeiras e possui esse alguém que não chegou, ainda mal acordada no fundo da sua memoria. Mete-lhe as mãos sujas de literatura fácil e barata, vira-a mordendo-a na nuca até não sentir em si absolutamente mais nada.
Escreveu sobre este assunto até ao vómito, estendido na espuma das ondas, cobertas de algas, que lhe batiam na cama. Gaivotas espavoridas cagavam-lhe em cima, tentando desesperadamente sair daquela praia de paredes brancas.

segunda-feira, dezembro 05, 2005

A VIAGEM DE UM LOUCO I de X

Num quarto de paredes brancas, está um louco que escreve freneticamente, esvaziando-se daquele último fôlego, deixando-se cair desamparado no fundo da prolongada noite. As lágrimas corriam-lhe nas faces e o ranho era lambido ocasionalmente consoante a sua intensidade. Das paredes saiam bocas, sem dentes, que pronunciavam apenas: palhaço de merda.
Sai do quarto. Entra no quarto. Ninguém o persegue. Deita-se na cama e passam cinco anos. A viagem é registada minuto a minuto. Levanta-se pensando que alguém chegaria com uma qualquer planta, monocotiledónea da família das orquidáceas, notáveis pela rara beleza, forma e colorido, colada nos ombros. Esse alguém não chegou.
Escreve apenas para ter o prazer de se reler. Saborear o que sobejou da noite, de uma realidade qualquer, talvez para avaliar o seu próprio lixo e amar-se um pouco mais. Há anos que só consegue escrever deitado e no desejo de aperfeiçoar as maresias que já não evocam pessoas queridas que o mar se encarregou de levar e comer. Escreve que foi simples viver assim.

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